domingo, 10 de setembro de 2017

Capítulo 1
Qual acontece entre os homens, no Mundo Espiritual que os rodeia, sofrimento e expectação esmerilam a alma, disciplinando,
aperfeiçoando, reconstruindo...


Enquanto envergamos a veste física, habitualmente imaginamos o paraíso das religiões encravado para lá da morte.


Sonhamos o apaziguamento integral dos sentidos, o acesso à alegria inefável que anestesie toda lembrança convertida em chaga mental. No entanto, atravessada a fronteira de cinza, eis-nos erguidos à responsabilidade inevitável, ante o reencontro da própria consciência.

Uma vida humana, a continuar-se naturalmente no Além, assume, assim, a forma de partida, em dois tempos distintos.


Diferem campos e vestimentas; entretanto, a luta da personalidade, de um renascimento a outro na Terra, afigura-se laborioso prélio em duas fases.

Anverso e reverso da experiência. O berço inicia, o túmulo desdobra.

Com raríssimas exceções na regra, somente a reencarnação consegue transfigurar-nos de modo fundamental.

Deixamos no esquife o casulo mirrado e transportamos conosco, na mesma ficha de identificação pessoal, para outras esferas, os ingredientes espirituais que cultivamos e atraímos.


Inteligências em evolução na eternidade do espaço e do tempo, os Espíritos domiciliados na Moradia Terrestre, em abandonando o invólucro de matéria mais densa, assemelham-se, figuradamente, aos insetos. Larvas existem que se retiram do ovo e revelam-se na condição de parasitas, enquanto que outras se transformam, de imediato, em falenas de prodigiosa beleza, ganhando altura.


Encontramos criaturas que se afastam do estojo carnal, entrando em largos processos obsessivos, nos quais se movimentam à custa de forças alheias, ao lado de outras que, de pronto, se elevam, aprimoradas e belas, a planos superiores da evolução. 


E entre as que se agarram profundamente às sensações da natureza física e as que conquistam a sublime ascensão para estágios edificantes, no Grande Além, surge a gama infinita das posições em que se graduam.

Emergindo na Espiritualidade, após a desencarnação, sofremos, a princípio, o desencanto de todos os que esperavam pelo céu teológico, fácil de granjear.


A verdade aparece por alavanca renovadora.


Padecendo ainda espessa amnésia, relativamente ao passado remoto, que descansa nos porões da memória, somos então defrontados por velhos preconceitos que se nos entrechocam no íntimo, tombando despedaçados. Suspiramos pela inércia que não existe. Exigimos resposta afirmativa aos absurdos da fé convencionalista e dogmática que reclama a integração com Deus para si só, excluindo, pretensiosamente, da Paternidade Divina, os que não lhe comunguem a visão acanhada.


De semelhantes conflitos, por vezes terríveis e extenuantes, nos recessos da mente, muitos de nós saímos abatidos ou revoltados para extensas incursões no vampirismo ou no desespero; a maior parte dos desencarnados, porém, a pouco e pouco se acomoda às circunstâncias, aceitando a continuidade do trabalho na reeducação própria, com os resultados da existência aparentemente encerrada no mundo, à espera da reencarnação que possibilite renovação e recomeço... Essas ponderações afogueavam-me o pensamento, reparando a tristeza e o cansaço do meu amigo Pedro Neves, devotado servidor do Ministério do Auxílio.


Partilhando expedições arrojadas e valorosas em atividade benemérita, ainda não lhe víramos hesitações quaisquer. Veterano de empreendimentos socorristas, jamais entremostrara desânimo ou fraqueza, por mais opressivo se lhe evidenciasse o peso de compromissos e obrigações.


Advogado que fora, na existência última, caracterizava-se por extrema lucidez, no exame dos problemas que as eventualidades do caminho apresentassem.


Sempre denodado e humilde; agora, porém, enunciava sensíveis alterações de comportamento.


Soubera-o com breves encargos, na esfera física, para atender, de modo mais direto, a necessidades de ordem familiar, cuja extensão e natureza não me houvera sido possível perceber.


Desde então, mostrava-se arredio e desencantado, copiando o feitio de companheiros recém-chegados da Terra. 


Isolava-se em funda reflexão. Fugia à conversação fraterna.

Queixava-se disso ou daquilo. E vez por outra, em serviço, denotava lágrimas que não chegavam a cair.

Ninguém ousava sondar-lhe o sofrimento, tal a fibra moral em que se lhe exprimiam as atitudes.


Provocando, porém, algumas horas de desafogo, num banco de jardim, busquei habilmente lançá-lo à extroversão, alegando dificuldades que me preocupavam. Referi-me aos descendentes que deixara no mundo e às inquietações que me causavam. Pressentia-lhe na tristeza a presença de lutas domésticas a lhe torturarem a alma, quais ulcerações em recidiva, e não me enganei.


O amigo absorveu a isca afetiva e desenovelou os sentimentos.


A principio, falou vagamente das apreensões que lhe assomavam ao espírito agoniado. Aspirava a esquecer, alhear-se; no entanto... a retaguarda familiar no mundo lhe infligia dolorosas reminiscências difíceis de extirpar.


– É a esposa quem o aflige, assim tanto? – aventurei, procurando localizar o carnicão da mágoa que lhe abria as comportas do pranto silencioso.


Pedro fitou-me com a postura dolorida de um cão batido e respondeu:


– Há momentos, André, nos quais será preciso biografar-nos, ainda que superficialmente, para vascolejar o pretérito e extrair dele a verdade, somente a verdade...


Meditou, algo sufocado por instantes, e prosseguiu:


– Não sou homem que me deixe governar por sentimentalismos, embora aprecie as emoções pelo justo valor. Além disso, a experiência, desde muito, me ensinou a raciocinar.


Há quarenta anos moro aqui e, há quase quarenta anos, a esposa compeliu-me a absoluto desinteresse do coração. Deixei-a quando a mocidade das energias físicas lhe estuava no sangue e Enedina, compreensivelmente, não pôde sustentar-se a distância das exigências femininas.

E prosseguiu esclarecendo que ela se associara a outro homem, num segundo casamento, entregando-lhe seus três filhos por enteados. Esse novo marido, entretanto, arredou-a completamente de sua convivência espiritual.


Homem ambicioso, senhoreou os cabedais que ele ajuntara, logrando multiplicá-los imensamente, à força de astúcia em arrojadas empresas comerciais. 

E agiu com tanta leviandade que a esposa, dantes simples, se apaixonou pelas comodidades demasiadas, gastando o tempo terrestre em prodigalidades e tafulices, até que se rojou às derradeiras viciações nos desvarios do sexo.

Observando o esposo em aventuras galantes, de modo permanente, na posição de cavalheiro rico e desocupado, quis desforrar-se, estabelecendo para si mesma desordenado culto ao prazer, mal sabendo que apenas se transviava, em lamentáveis desequilíbrios.

– E meus dois filhos, Jorge e Ernesto, ludibriados pelo fascínio do ouro com que o padrasto lhes comprava a subserviência, enlouqueceram no mesmo delírio do dinheiro fácil e se animalizaram a tal ponto que nem de leve guardam qualquer traço de minha memória, não obstante serem atualmente negociantes abastados, em idade madura...


– A esposa, no entanto, ainda se encontra no mundo físico? – arrisquei, cortando a pausa longa, para que a explicação não esmorecesse.


– Minha pobre Enedina voltou, há dez anos, abandonando o corpo pela imposição da icterícia, que lhe apareceu por verdugo invisível, evocado pelas bebidas alcoólicas.


Fitando-a, edemaciada, vencida, ensaiei alarmado todos os processos de socorro à minha disposição...

Atemorizava-me a perspectiva de vê-la escravizada às forças aviltantes a que se jungira sem perceber; ansiava retê-la no corpo de carne, como quem resguarda uma criança inconsciente em disfarçado refúgio. Entretanto, ai de mim! Colhida por entidades infelizes, às quais se consorciou levianamente, em vão procurei estender-lhe algum consolo, porquanto ela mesma, depois de desencarnada, se compraz na viciação, tentando a fuga impossível de si própria. Não há outro recurso senão esperar, esperar...

– E os filhos? – Jorge e Ernesto, hipnotizados pela riqueza material, para mim fizeram-se inabordáveis. Mentalmente, não me registram a lembrança. Intentando captar-lhes cooperação e simpatia, o padrasto chegou a insinuar que não seriam meus filhos e sim dele próprio, através de união com minha esposa. ao tempo de minha experiência terrestre, o que Enedina, infelizmente, não desmentiu...


O companheiro esboçou um sorriso amarelo e considerou:


– Imagine! Na carne, o medo é comum, à frente dos desencarnados e, em meu caso, fui eu quem se afastou do ambiente doméstico, sob sensações de insopitável horror...


Ainda assim, a bondade de Deus não me arrojou à solidão, em se tratando da ternura familiar. Tenho uma filha de quem jamais me separei pelos laços do espírito... Beatriz, que deixei na flor da meninice, suportou pacientemente as afrontas e conservou-se fiel ao meu nome.

Somos, assim, duas almas, na mesma faixa de entendimento...

Pedro enxugou os olhos e acrescentou:


– Agora, com quase meio século de existência entre os homens, presa embora ao carinho que consagra ao esposo e ao filho único, prepara-se Beatriz para o regresso...


Minha filha vem atravessando os derradeiros dias terrenos, com o corpo torturado pelo câncer...

– Mas, atormenta-se você por isso? A idéia do reencontro pacífico não será, antes, motivo para alegrar-se?


– E os problemas, meu amigo? Os problemas do grupo consangüíneo?


Por muitos anos, estive à margem de todas as tricas do navio familiar... Fizera-me ao oceano largo da vida... Agora, por amor à filha inesquecível, sou compelido a topar, com espírito de caridade, a irreflexão e o descaramento. Estou inapto, desambientado...


Desde que me postei à cabeceira da doente querida, vejome na condição do aluno debilitado pela expectativa de erros constantes..


Dispunha-se Neves a prosseguir, mas urgente chamado de serviço nos impeliu à separação e, conquanto diligenciando acalmá-lo, despedi-me, sob o compromisso de irmanar-me a ele, nas
tarefas de assistência à enferma, de modo mais intenso, a partir do dia seguinte.
Capítulo 2

Repousava Dona Beatriz no leito bem-posto, patenteando enorme
cansaço.


A doença, decerto, consumia-lhe a forma física, desde muito, porquanto aos quarenta e sete anos de idade mostrava o rosto singularmente engelhado e o corpo leve.


Refletia, ensimesmada, tristonha... Fácil de se lhe ver a preocupação, ante a crise iminente. Idéias a lhe fluírem, vivas e nobres, indicavam que se habituara à certeza da desencarnação próxima. Notava-se-lhe fixada no pensamento a convicção do viajante que atingira o término de espinhosa trilha, da qual, por fim, lhe competia sair.


Conquanto tranqüila, inquietava-se pelos vínculos que a prendiam no mundo. Apesar disso, visualizava as portas do Além, plasmando formosos quadros íntimos, como quem sonha à luz da vigília, e recordava Neves, o pai que perdera na infância, qual se visse prestes a recuperá-lo, em definitivo, tal a extensão do amor que os acolchetava um ao outro.


Observávamos, porém, sem dificuldade, que a alma afetuosa da enferma se dividia mais fortemente, na Terra, entre o esposo e o filho, dos quais se reconhecia em gradativo processo de inevitável separação.


No aposento acolhedor, que alguns adereços ataviavam, tudo transparecia limpeza, reconforto, assistência, carinho.


Ante o leito, encontramos sisudo enfermeiro desencarnado que Neves abraçou, demonstrando guardá-lo à conta de imensa estima.


E apresentou-nos: – Amaro, temos aqui André Luiz, amigo e médico que, doravante, nos partilhará os serviços.


Saudamo-nos cordialmente.


Neves inquiriu, atencioso:


– O irmão Félix veio hoje?


– Sim, como sempre.


Informei-me, então, de que o irmão Félix, desde muitos anos, era o superintendente de importante casa socorrista, ligada ao Ministério da Regeneração, em Nosso Lar. 


Famoso pela bondade e paciência, era conhecido como sendo um apóstolo da abnegação e do bom-senso.

Não dispúnhamos, entretanto, de qualquer tempo para considerações pessoais.


Dona Beatriz experimentava dores agudas e o companheiro mostrou o propósito de aliviá-la, através do passe confortativo, enquanto a senhora se via aparentemente a sós. Em grande prostração física, revelava profunda sensibilidade mediúnica.


Oh! os sublimes pensamentos do leito de dor!... De olhos cerrados, a doente, embora não assinalasse a presença paterna, lembrava a ternura do genitor, que lhe parecia distante e inacessível no tempo.


Identificava-se, de novo, com a ingenuidade infantil...

Na acústica da memória, ouvia as canções do lar, voltava, encantada, às horas da meninice... Reconstituindo na imaginação as relíquias do berço, sentia-se no regaço paternal, à maneira da ave de regresso à penugem do ninho!


Dona Beatriz chorava. Lágrimas de enternecimento inexprimível perolavam-lhe a face. E sem que a boca enunciasse o menor movimento, clamava intimamente com toda a alma: “pai, meu pai!...”


Meditai, vós que, no mundo, admitis para os desencarnados a indiferença da cinza! Para lá dos túmulos, amor e saudade muitas vezes se transformam, no vaso do coração, em pranto comburente!


Neves cambaleou, agoniado... Enlacei-o, contudo, a pedir-lhe coragem. A ventania da angústia, porém, sobre o ânimo do companheiro atribulado, perdurou apenas alguns momentos.


Refeito, a recompor o semblante que o sofrimento transfigurara, espalmou a destra na fronte da filha e orou, suplicando o amparo da Bondade Divina.

Chispas de luz, quais minúsculas flamas azulíneas, evolavam-lhe do tórax, a se projetarem naquele corpo fatigado, revestindo-o de energias calmantes.


Emocionado, observei que Dona Beatriz se acomodava a suave torpor. E antes que pudesse enunciar qualquer impressão, uma jovem, figurando-se nas vinte primaveras da experiência física, entrou cautelosamente no quarto. Renteou conosco, sem percebernos, de leve, e tomou o pulso da enferma, verificando-lhe as condições.


A recém-chegada esboçou o gesto de quem reconhecia tudo em ordem. Encaminhou-se, logo após, na direção de pequenino armário próximo e, munindo-se dos recursos necessários, voltou à cabeceira da dona da casa, aplicando-lhe injeção anestesiante.


Dona Beatriz não mostrou a mínima reação, continuando a descansar, sem dormir.


O concurso magnético de minutos antes insensibilizara-lhe os centros nervosos.


Perfeitamente tranqüila, a moça, na qual observávamos a posição da enfermeira improvisada, retirou-se para um dos ângulos do aposento, a largar-se em acolhedora poltrona de vime. Em seguida, descerrou um dos segmentos da janela quadripartida, atraindo a corrente de ar fresco que nos bafejou sem alarde.


Respirando à saciedade, a jovem, com grande surpresa para mim, acendeu um cigarro e passou a fumar distraidamente, dando a idéia de quem diligenciava fugir de si mesma.


Neves fitou-a, deitando-lhe significativo olhar em que se mesclavam piedade e revolta e, indicando-a, discreto, informoume:


– Trata-se de Marina, contadora de meu genro, que se dedica ao comércio de imóveis... Agora, a pedido dele, desempenha funções de assistente...


Evidente sarcasmo transparecia-lhe da palavra reticenciosa.


– Imagine! – voltou a dizer – fumar aqui. numa câmara de dor, onde a morte está sendo esperada!...


Contemplei Marina, cujos olhos denotavam recôndita inquietude.


Manifestando ainda alguns laivos de respeitosa estima para com a nobre senhora estirada no leito, soprava, para além da janela, as baforadas cinzentas que lhe escapavam da boca.


Repartindo a própria atenção entre ela e Amaro, o nosso amigo da esfera espiritual, Neves, conquanto mudo e constrangido, parecia querer falar à vontade e desinibir-se.


Tentei, porém, adquirir mais amplo conhecimento da posição.


Aproximei-me reverentemente da jovem, no propósito de sondá-la em silêncio e colher-lhe as vibrações mais intimas; contudo, recuei assustado.


Estranhas formas-pensamentos, retratando-lhe os hábitos e anseios, em contradição com os nossos propósitos de socorrer a doente, fizeram-me para logo sentir que Marina se achava ali, a contragosto.


A sua mente vagueava longe...

Quadros vivos de esfuziante agitação ressumavam-lhe na cabeça...


De olhar parado, escutava, adentro de si própria, a música brejeira da noite festiva, que atravessara na véspera, e experimentava ainda na garganta a impressão do gim que sorvera, abundante.


Apesar de surgir-nos, superficialmente, à guisa de menina crescida, sob o turbilhão de névoa fumarenta, exibia telas mentais complexas, a lhe relampaguearem na aura imprecisa.


Trazido pelas circunstâncias a colaborar na solução de um processo assistencial, sem qualquer intuito menos digno, passei a estudar-lhe o comportamento isolado. A Medicina terrestre, no futuro, para atender com eficácia, ao doente, examinar-lhe-á, com minúcias, a feição espiritual de todas as peças humanas que lhe articulam a equipe.


Respeitoso, iniciei os apontamentos de ampla anamnese psicológica.


Marina apresentou, a princípio, a figura de um homem amadurecido, cunhada por sua própria imaginação, a repetir-se-lhe, muitas vezes, acima da fronte.


Ela e ele, juntos... Percebia-se-lhes, de pronto, a intimidade, adivinhava-se-lhes o romance... Fisicamente, semelhavam pai e filha; entretanto, pelas atitudes sentimentais, não conseguiam disfarçar a estuante paixão um pelo outro. Nos painéis sutis que surgiam e se desfaziam, alternadamente, mostravam-se ambos extasiados, ébrios de prazer, fosse aboletados no automóvel de luxo ou enlaçados na areia morna das praias, conchegados sob a proteção de arvoredo tranqüilo ou sorridentes em tumultuados abrigos de encantamento noturno... Deslumbrantes paisagens de Copacabana ao Leblon desfilavam por admirável fundo pictórico. A moça entrefechava as pálpebras para senhorear, com mais segurança, as reminiscências que lhe empolgavam os sentidos, para, logo após, mentalizar, surpreendentemente, outro homem, tão jovem quanto ela mesma, evidenciando-se-nos entregue às cenas de um filme interior, diferente...


Formava novo tipo de palco para exibir a lembrança das próprias aventuras, no qual se destacava igualmente ao pé do rapaz, como se estivesse afeiçoada aos mesmos sítios, desfrutando companhias diversas... Ela e ele também juntos, no mesmo carro entrevisto ou na condição de pedestres felizes, saboreando refrescos ou repousando em animados entendimentos nos jardins públicos, sugerindo o encontro de crianças enamoradas, a entretecerem aspirações e sonhos..

Naqueles rápidos minutos de fixação espiritual, em que se exteriorizava tal qual era, Marina revelava a personalidade dúplice da mulher dividida entre o carinho de dois homens, jugulada por pensamentos de medo e inquietude, ansiedade e arrependimento.


Neves, que de algum modo me partilhava a inspeção, quebrou a calma reinante, enunciando, abatido:


– Está vendo? Julga que é fácil para mim, pai da doente, suportar aqui semelhante criatura?


Tratei de consolá-lo e, por solicitação dele próprio, passamos a pequeno salão de leitura, contíguo ao aposento da enferma, a fim de que pudéssemos refletir e conversar.

sábado, 9 de setembro de 2017

Capítulo 3
Na peça isolada, o amigo cravou os olhos lúcidos nos meus e
obtemperou:


– Após a desencarnação, achamo-nos na segunda fase da própria existência e ninguém, na Terra, imagina as novas condições que nos tomam de assalto... De começo, renovamos a vida...


Equipes salvadoras, apoio na prece, estudo das vibrações, escola da caridade. Ensaiamos, felizes, o culto dos grandes sentimentos humanos... Depois, quando trazidos, de retorno, ao trabalho mais íntimo, na arena doméstica, que supúnhamos varrida para sempre da memória, como na situação especial de meu caso, a didática é outra... É preciso espremer o sangue do coração para confirmar o que ensinamos com a cabeça...


Avalie que me encontro nesta casa, em serviço, apenas há vinte dias e já recebi tantas punhaladas na alma, que, não fossem as necessidades de minha filha, teria fugido, incontinenti... Sem minhas observações pessoais, não teria admitido tanta leviandade em meu genro... Bilontra, fanfarrão despudorado.

– Sim, sim... – tentei cortar as doloridas alegações.


Comentei, breve, a excelência do olvido de todo mal, argumentei quanto ao merecimento do auxílio silencioso, através da oração.


Neves sorriu, meio desconsolado, e ajuntou:


– Compreendo que você se reporta à vantagem do pensamento positivo na fixação do bem e creia que, de minha parte, farei quanto puder para não esquecê-lo. Agora, porém, tolere, por favor, as minhas considerações talvez descabidas. .. 


A Medicina é ciência luminosa, recheada de raciocínios puros; no entanto, muitas vezes é obrigada a descer da alta cultura para dissecar os cadáveres... Endereçou-me o olhar de alguém que anseia derramar-se noutro alguém e continuou:

– Saiba você que na quinta noite de minha permanência aqui, notando Beatriz em aguda crise de sofrimento, diligenciei buscar meu genro para assisti-la em pessoa... E sabe onde o encontrei?


Nada de escritório, segundo a falsa informação que deixara em casa. Indignado, fui surpreendê-lo numa furna penumbrosa, em plena madrugada, junto da menina que você acaba de conhecer.


Os dois unidos, qual marido e mulher. Champanha correndo e música lasciva. Entidades perturbadoras e perturbadas, jungidas ao corpo dos bailarinos, enquanto outras iam e vinham, a se inclinarem sobre taças, cujo conteúdo lábios entediados não haviam conseguido sorver totalmente. 


Em recanto multicolorido, onde algumas jovens exibiam formas semi-nuas em coleios esquisitos, vampiros articulavam trejeitos, completando, em sentido menos digno, os quadros que o mau-gosto humano pretendia apresentar, em nome da arte. Tudo rasteiro, impróprio, inconveniente... 

Fisguei meu genro e a colaboradora, nos braços um do outro, recordei minha filha doente e revoltei-me.

Súbito desespero apossou-se de mim. Oscilou minha razão escurecida, pois cheguei a justificar, de relance, a deplorável atitude dos companheiros desencarnados que se transformam em vingadores intransigentes. O “homem velho” que eu fora e o “homem renovado” que aspiro a ser digladiavam em minhas fibras recônditas...

Estacou numa pausa, rearticulando os pensamentos, e continuou:


– Tinha visto, apavorado, em outro tempo, aqueles que se animalizavam, depois da morte, nos lares que lhes haviam sido reduto à felicidade, a se precipitarem, violentos, sobre os entes amados que lhes desertavam da afeição...


Funcionara, entusiasmado, em diversas comissões socorristas, procurando esclarecê-los e modificá-los para o bem, a fazer-lhes sentir que as lutas morais, depois da desencarnação, se erigiriam igualmente em penosa herança para todos aqueles com os quais se desarmonizavam; advertia-os de que o túmulo esperava também quantos, na Terra, lhes sonegavam lealdade e ternura... E, bastas vezes, lograva acalmá-los para a retirada benéfica. Mas ali..

Imprudentemente agastado contra a insensibilidade do homem que me desposara a filha querida, vi-me chamado a praticar os bons conselhos que havia administrado...

O amigo fez ligeiro intervalo, enxugou as lágrimas que lhe corriam no rosto, ao evocar a própria inconformação, e completou a frase, aditando:


– Mas não pude. Tomado de cólera incoercível, avancei, qual fera desacorrentada, e, irrefletidamente, esmurrei-lhe a face. Ele deixou-se cair nos ombros da companheira, acusando agoniada indisposição, como se estivesse sob o impacto de súbita lipotimia...


Dispunha-me, em seguida, a torcer-lhe o corpo, em meus braços rijos; entretanto, não consegui. Uma senhora desencarnada, de semblante nobre e calmo, aproximou, desarmando-me o íntimo.


Não entremostrava sinais exteriores de elevação.


Patenteava-se, aliás, tão profundamente humana, quanto nós mesmos. Diferenciava-se apenas através de minúsculo distintivo luminoso, que lhe brilhava palidamente no peito, qual jóia rara a emitir discreta radiação. Afagou-me, de leve, a cabeça e induziu-me à serenidade.

Envergonhado, fitei-a, constrangido. A dama inesperada não me censurou, nem fez qualquer alusão ao meu gesto infeliz. Ao revés, falou-me com bondade, quanto à filha doente. Demonstrava conhecer Beatriz, tanto quanto eu próprio. E acabou convidando-me a sair do recinto, para acompanhá-la até ao quarto da enferma.


Atendi sem relutância. E porque a gentil interventora, no trajeto, somente se reportasse aos méritos da compreensão e da tolerância, sem qualquer referência aos desvarios da casa que vínhamos de deixar, procurei reprimir-me, para cogitar, exclusivamente, de socorro à filha em dificuldade.


A mensageira anônima recolocou-me
no lar, despedindo-se, delicada; e depois disso não mais a vi, pelo que, ainda agora, me lembro dela, positivamente intrigado...


Ensaiava alguma observação reconfortante, rememorando minhas experiências, quando Neves, interpretando-me os pensamentos, obtemperou depois de longa pausa:


– Você, André, nunca se viu defrontado por acontecimentos assim desagradáveis?


Recordei, emocionadamente, as primeiras impressões que me haviam transtornado a sensibilidade, após a desencarnação. Reconstituí na memória todas as telas em que me surpreendera desanimado, excitado, dilacerado, vencido...


As transformações domésticas, os empeços familiares, os impositivos da luta humana e as sugestões da natureza física que me haviam alterado a esposa e os filhos, na Terra, quando se reconheceram sem a minha presença direta, retornaram-me ao coração.


Senti-me mais estreitamente ligado ao meu interlocutor, assimilando-lhe o torturado influxo mental, e comentei:


– Sim, meu amigo, atravessada a grande barreira, os meus problemas, a princípio, foram enormes...


Entretanto, não foi possível desabafar-me.


Cavalheiro maduro e simpático penetrou o recinto, compreensivelmente sem perceber- nos.

Neves, contrafeito, indicou-o, explicando-me:


– É Nemésio, meu genro...


O recém-chegado mirou-se, atenciosamente, em espelho próximo, repassou lenço alvo sobre a testa suarenta e, quando reajustava a gravata bem-posta, escutou prolongado suspiro.


Lançou-se, incontinenti, para a câmara contígua e seguimo-lo.

Marina veio recebê-lo com amável sorriso, conduzindo-o à cabeceira da senhora, que passou a fitá-lo entre confortada e abatida.

Dona Beatriz estendeu a mão descarnada que o marido beijou.


Trocando com ela enternecido olhar, acomodou-se Nemésio rente aos travesseiros, a endereçar-lhe perguntas carinhosas, ao mesmo tempo que lhe alisava a descuidada cabeleira.


A doente pronunciou algumas palavras breves, diligenciando agradá-lo, e ajuntou:


– Nemésio, você me perdoará se volto ao caso de Olímpia...


A pobre criatura perdeu a casa quase que totalmente... É necessário que você lhe garanta abrigo seguro... Penso nela com os filhos ao desamparo. Tire-me dessa aflição...


O interpelado mostrou profunda emotividade e respondeu, cortês:


– Beatriz, não há dúvida alguma. Já enviei um amigo, construtor experiente, ao local. Não se preocupe, tudo faremos sem qualquer sacrifício. Questão de tempo...


– Receio partir de uma hora para outra...


– Partir para onde?


Nemésio acariciou-lhe a fronte descolorida, sacou um sorriso amargo e prosseguiu:


– Enquanto você estiver em tratamento, nossas viagens estão sustadas. Não é hora de São Lourenço...


– Minha estação curativa será outra.


– Não me fale em pessimismo... Ora, ora... Onde a primavera de nossa casa? Você anda esquecida de que nos ensinou a colocar alegria em tudo? Largue os ares sombrios... Ainda ontem, ouvi nosso médico. Você entrará em convalescença, já, já...


Amanhã tomarei providências definitivas para que o barraco seja levantado. Você estará restabelecida em breve e ambos iremos ao primeiro café em casa de nossa Olímpia...

Dona Beatriz, ante o carinho dele, pareceu reanimar-se. Entreabriu-se-lhe a boca num largo sorriso, que se me afigurou uma flor de esperança num cacto de sofrimento.


Aqueles olhos imensamente lúcidos derramaram duas lágrimas de felicidade que o esposo enxugou com gracioso gesto. Na face amarelada, lampejaram raios de confiança.


Experimentando-se mentalmente renovada, a enferma acreditou no reerguimento do corpo físico e ansiou viver, viver por muito tempo ainda no aconchego familiar.


Manifestando o próprio reconforto, solicitou de Marina uma chávena de leite.

A enfermeira atendeu, comovida. E, enquanto a doente sorvia o líqüido, gole a gole, refleti na bondade daquele homem que a palavra do companheiro me apresentara noutras cores.


O pensamento de Nemésio revelara-se-nos, até ali, claro e puro.


Trazia Dona Beatriz no cérebro, nos olhos, nos ouvidos, no coração. Dispensava-lhe a compreensão de um amigo, a ternura de um pai.


Neves endereçava-me estranho olhar, qual se estivesse, tanto quanto eu, defrontado por indizível assombro.


Alguns momentos escoaram-se, rápidos.


Quando a enferma devolveu a xícara, outro quadro se nos desdobrou à visão.


Nemésio levantara-se rente ao leito e, por trás da cabeceira alteada, estendeu a Marina, que se mantinha do lado oposto, a mão grossa e hirsuta a que ela entregou a destra alva e leve.


O marido passou, então, a falar brandas palavras para a esposa satisfeita, afagando, simultaneamente, os róseos dedos da jovem que, pouco a pouco, se desinibia, através do olhar brejeiro. Contemplei Nemésio, admirado. 


Alteravam-se-lhe agora os pensamentos, que me pareceram, então, incompatíveis com a sensação de respeitabilidade que ele nos inspirava.

Voltei-me, instintivamente, para Neves e ele, indicando-me as duas mãos que se acariciavam, uma à outra, exclamou para mim:


– Este homem é um enigma.
Capítulo 4
Acomodados, de novo, no aposento próximo, buscava soerguer o ânimo de Neves, positivamente desapontado.

Arrojara-se o companheiro ao clima da dignidade ofendida, dando a impressão de que a família encarnada ainda lhe pertencia.


Exprobrava a conduta do genro. Exalçava os merecimentos da filha. Aludia ao passado, quando ele próprio vencera lances difíceis na luta sentimental. Desculpava-se.


Ouvia-lhe, condoído, os apontamentos, a refletir, de minha parte, quanto à dificuldade com que somos todos nós defrontados para dissipar a ilusão da posse sobre os outros. Não fosse a obrigação de respeitar-lhe os sentimentos e, certo, me exorbitaria, ali mesmo, em comprida tirada filosófica, recomendando o desprendimento:


contudo, logrei apenas confortá-lo:


– Não se aflija. Desde muito aprendi que para as pessoas desencarnadas, quase sempre, as portas do lar se fecham no mundo, quando a morte lhes cerra os olhos.


Entretanto, não pude prosseguir.


À guisa de duas crianças enlevadas e jubilosas, Nemésio e Marina penetraram a câmara, fugindo claramente à presença da enferma.


Guardavam no semblante a expressão dos namorados felizes, quando alimentam o clássico “enfim sós”, trancando-se contentes.


Dispus-me, instintivamente, a sair, mas Neves sustou-me o impulso de retirada, convidando-me, aturdido:


– Fique, fique... Não louvo a indiscrição; no entanto, estou, ao lado de minha filha, em sentido direto, simplesmente há alguns dias e devo saber o que ocorre, para ser útil... A esse tempo, Nemésio enlaçara a enfermeira, qual se voltasse,
de improviso, aos arrebatamentos da juventude. 


Amimava-lhe as mãos miúdas e os cabelos sedosos, reportando-se ao futuro.

Justificava-se, copiando as preocupações de um adolescente, interessado em vacinar a escolhida contra o ciúme.


Deveriam ser bons para Beatriz, às portas do fim, e agradecer ao destino que os livrava dos aborrecimentos e percalços de um desquite, mesmo amigável... Ouvira o médico, na véspera, informando-se de que a doente não conseguiria viver mais que algumas semanas. E sorria, qual menino travesso, explicando que não admitia a sobrevivência da alma; no entanto, a seu ver, se houvesse vida além da morte, não desejava que a esposa partisse, nutrindo por eles ressentimentos quaisquer. Apaixonado, procurava convencer-se de que se via correspondido, cravando a atenção nos olhos enigmáticos da companheira, a quem se reconhecia imanizado por intensa atração.

Marina retribuía, como quem se deixava querer bem; no entanto, apresentava o fenômeno singular da emoção jungida a ele e o pensamento voltado ao outro, empenhando-se, por todos os meios, a encontrar nesse outro o incentivo necessário a essa mesma emoção.


Nemésio comentava os próprios empeços, sensibilizado.


Confessava-lhe devoção inexcedível. Não a queria de ânimo inquieto. De futuro, abandonaria os negócios.


Viveriam felizes, na casinha de São Conrado, que transformaria em bangalô confortável, entre o verde do mar e o verde da terra. Mandaria aprestar a reconstrução em estilo novo, a fim de que a moradia os recebesse, no momento oportuno. Que ela confiasse.

Aguardaria apenas a modificação do próprio estado social para conferir-lhe o título de esposa, esposa para sempre.

Isso tudo era dito num jogo de manifestações carinhosas em que a sinceridade prevalecia num lado e o cálculo no outro. Assinalei, porém, estranha ocorrência.


Ele e ela comunicavam-se, entre si, as mais ternas expansões de encantamento recíproco, sem ser dissoluto, e pareciam aderir, automaticamente, às impressões que esboçávamos, de vez que acompanhávamos os mínimos gestos dos dois, com aguçada observação, prejulgando-lhes os desígnios com o fundo de nossas próprias experiências inferiores já superadas.


Semelhantes registros que formulamos, com absoluta imparcialidade, são dignos de nota, porquanto, atento qual me achava ao estudo, vimo-nos obrigados a reconhecer que a nossa expectativa maliciosa, aliada ao espírito de censura, estabelecia correntes mentais estimulantes da turvação psíquica de que ambos se viam acometidos, correntes essas que, partindo de nós na direção deles, como que lhes agravava o apetite sensual.


O marido de Beatriz acentuava, em transportes de felicidade juvenil, embora a voz ciciante, o anseio com que lhe aguardava o carinho permanente no refúgio caseiro.


De inopinado, porém, a jovem prorrompeu em pranto copioso.


O companheiro beijou-lhe a face, aspirando a aliviar-lhe a tensão convulsiva.


De nosso lado, entretanto, reparávamos que Marina se fixava, cada vez mais, no moço cuja figura se lhe engastava à imaginação.


Escabroso, sem dúvida, o conflito de que se verificava possuída, à vista da sinceridade inequívoca de todas as promessas que lhe eram endereçadas.


Olvidando os compromissos abraçados, perante a esposa, que lhe requisitava, naquela hora, mais amplas evidências de fidelidade e ternura, bandeara-se o chefe da casa, apaixonadamente, para ela, entregando-se-lhe sem reservas. Inteligente bastante para entender quanto se lhe debilitara o raciocínio de homem circunspecto, a menina identificava a fase perigosa da partida infeliz a que se lançara e aturdia-se, ali, confundida entre aflições e remorsos a lhe arpoarem o coração.


Compelidos pelas circunstâncias à penetração dos assuntos em exame, assinalávamos as telas mentais da moça, a se lhe derramarem do íntimo, irradiando-lhe a história.


Fizera-se querida pelo maduro genro de Neves, sem dedicar-lhe outros sentimentos que não fossem reconhecimento e admiração...


Todavia, agora que os acontecimentos lhe impeliam a alma na direção de laços mais profundos, tremia pelas indébitas concessões que lhe havia feito.


Remoia-lhe no espírito as recônditas reminiscências de sua aventura afetiva, recapitulando todos os sucessos pelos quais havia atraído o protetor experiente aos seus métodos sutis de sedução, para concluir, assustada, que amava até à loucura aquele rapaz franzino, que se lhe destacava do pensamento, através de cativantes apelos da memória.

Dentro dela, embatia-se guerra terrível de emoções e sensações.


Nemésio consolava-a, formulando frases de paternal solicitude.


E, ao responder-lhe às reiteradas perguntas, quanto ao choro intempestivo, a jovem adotou largo processo de perfeita dissimulação, invocando problemas domésticos para articular evasivas com que encobria a realidade.


Tentando esquivar-se de si mesma, reportou-se a supostas agruras do lar. Salientou exigências maternas, falou em dificuldades financeiras, alegou fantásticas humilhações que colhia no trato da irmã adotiva, mencionou incompreensões do genitor, em rixas constantes nos círculos da família...


O interlocutor reconfortou-a. Que não se amofinasse. Não estaria a sós. Partilhar-lhe-ia todos os impedimentos e dissabores, fossem quais fossem. Tivesse paciência.


O desenlace de Beatriz, indicado para breves dias, ser-lhes-ia o marco fundamental da ventura definitiva.

Exprimia-se Nemésio em tom de súplica. E talvez percebendo que apenas à força de palavras não conseguiria subtraí-la aos soluços, arrancou de pasta próxima um livro de cheques, colocando-lhe expressivo concurso amoedado nas mãos que o lenço molhado umedecera.


A moça pareceu mais comovida, exibindo no rosto a apreensão de quem se recriminava sem qualquer justificativa de consciência, ao passo que ele a enlaçava, afetuoso. No silêncio que sobreveio, voltei-me para Neves, mas não consegui pronunciar palavra.


Não obstante desencarnado, o amigo se me afigurava agora um homem positivamente vulgar da Terra, que a revolta azedava.


Sobrecenho crispado alterava-lhe a feição no desequilíbrio vibratório que precede as grandes crises de violência.


Receava se lhe transfigurasse a calamidade emotiva em agressão, mas sucedeu o imprevisto.


A súbitas, venerando amigo espiritual penetrou a câmara.


Arrebatadora expressão de simpatia marcava-lhe a presença.


Radioso halo circundava-lhe a cabeça; no entanto, não era a luz suave a se lhe extravasar docemente da aura de sabedoria que me impressionava e sim a substância invisível de amor que lhe emanava da individualidade sublime.


Fitei-lhe os olhos, de relance, com a idéia enternecedora de quem revia um companheiro, longamente esperado por aflitivas saudades acumuladas no coração.


Fluidos calmantes banhavam-me todo, qual se fosse visitado no âmago do ser por inexplicáveis radiações de envolvente alegria Onde teria conhecido, nas trilhas do destino, aquele amigo
que se me impôs ao sentimento qual irmão de velhos tempos?


Debalde vascolejei a memória naqueles segundos inolvidáveis.


Num átimo, vi-me recambiado às sensações puras da infância.


O emissário, que estacara à frente de nós, não me fazia retomar simplesmente a segurança a que me habituara, quando menino, ante os braços paternos, mas também ao carinho de minha mãe, que nunca se me apartara do pensamento.


Oh! Deus, em que forja da vida se constituem esses elos da alma? em que raízes de júbilo e sofrimento, através das reencarnações numerosas de trabalho e esperança, dívidas e resgates, se compõe a seiva Divina do amor que aproxima os seres e lhes transfunde os sentimentos numa só vibração de confiança recíproca?


Levantei meus olhos de novo para o benfeitor que se avizinhava e fui compelido a sofrear a própria emotividade a fim de não retê-lo instintivamente em arremessos de regozijo.


Erguemo-nos de chofre.


Após cumprimentá-lo, disse Neves, então desanuviado, a apresentar-me quase sorrindo:


– André, abrace o irmão Félix...


Adiantou-se, porém, o recém-chegado, ofertando-me um abraço e proferindo saudação calorosa, com o evidente propósito de frustrar quaisquer elogios no nascedouro.


– Grande contentamento o de vê-lo – disse, benevolente. – Deus o abençoe, meu amigo...


A comoção, entretanto, imobilizava-me. Não logrei arrancar do coração à boca as expressões com que anelava pintar o meu enlevo, mas osculei-lhe a destra com a simplicidade de uma criança, rogando-lhe mentalmente receber as lágrimas que me caíam da alma, por mudo agradecimento.


Ocorreu, em seguida, algo de inusitado.


Nemésio e Marina transferiram-se, de repente, a novo campo de espírito.


Confirmei a impressão de que a nossa curiosidade enfermiça e a revolta que dominava Neves até então haviam funcionado ali por estímulos ao magnetismo animal a que se ajustavam os dois enamorados, que nem de leve desconfiavam da minuciosa observação a que se viam sujeitos, porquanto bastou que o irmão Félix lhes dirigisse compassivo olhar para que se modificassem, incontinenti.


A visão de Beatriz enferma cortou-lhes o espaço mental, à feição de um raio. Esmoreceram-se-lhes os estos de paixão. Assemelhavam-se ambos a um par de crianças, atraídas uma para a outra, cujo pensamento se transfigura, de improviso, ante a presença materna.


E não era só isso. Não podia auscultar o mundo íntimo de Neves; contudo, de minha parte, súbita compreensão me inundou a alma.


E se eu estivesse no lugar de Nemésio? Estaria agindo melhor?


– Silenciosas indagações se me incrustavam na consciência, impelindo-me o espírito a raciocinar em nível mais alto.


Fitei o atribulado chefe da casa, possuído de novos sentimentos, percebendo nele um verdadeiro irmão que me cabia entender e respeitar.


Embora confessando a mim mesmo, com indisfarçável remorso, a impropriedade da atitude que assumira, momentos antes, prossegui estudando a metamorfose espiritual que se processava. Marina passou a revelar benéfica reação, como se estivesse admiravelmente conduzida em ocorrência mediúnica, de antemão preparada. Recompôs-se, do ponto de vista emotivo, patenteando integral desinteresse por qualquer forma de entretenimento físico, e falou, com delicadeza, da necessidade de voltar aos cuidados que a doente exigia. Nemésio, a refletir-lhe a renovada posição interior, não ofereceu qualquer embargo, acomodando-se em poltrona próxima, enquanto a jovem se retirava, tranqüila.


Reparei que Neves ansiava conversar, desabafar-se; no entanto, o benfeitor, que nos granjeara os corações, apontou o esposo de Dona Beatriz e convidou:


– Meus amigos, nosso Nemésio está seriamente enfermo, sem que ainda o saiba. Ignoro se já lhe notaram a deficiência orgânica...


Procuremos socorrê-lo.
Capítulo 5
Imperfeitamente refeitos do assombro que semelhante atitude
nos causava, passamos a colaborar com o irmão Félix, na aplicação
de recursos, a beneficio do amigo que, embora nos desconhecesse a presença, se mantinha agora em aturada reflexão.


Ao contacto das mãos do benfeitor que mobilizava, proficiente, a energia magnética, Nemésio expunha as deficiências do campo circulatório.


O coração, consideravelmente aumentado, denotava falhas ameaçadoras com endurecimento das artérias.


O examinando, rebuçado por fora, era enfermo grave por dentro.


Entretanto, a característica mais constrangedora que apresentava surgia na arteriosclerose cerebral, cujo desenvolvimento conseguíamos claramente positivar, manejando diminutos aparelhos de auscultação.


Comprovando longa experiência médica, o irmão Félix apontou-nos determinada região, em que notei a circulação do sangue reduzida, e informou:


– Nosso amigo permanece sob o perigo de coágulos bloqueadores e, além disso, é de temer-se a ruptura de algum vaso em qualquer acidente mais importante da hipertensão.


Como se nos percebesse a movimentação e nos registrasse os apontamentos, o genro de Neves, na cadeira estofada a que se recolhera, instintivamente respondia ao inquérito afetuoso a que lhe submetíamos a memória, elucidando-nos todas as dúvidas, através de reações mentais específicas.


Acreditava-se afundado na imaginação, ignorando que se nos revelava, por inteiro, na feição de um doente voltado para os esclarecimentos da anamnese.

Rememorou as tonturas ligeiras que vinha experimentando amiúde.

Vasculhava a lembrança, atendendo-nos às perguntas. Alinhava acontecimentos passados, fixava pormenores. Reconstituiu, quanto
possível, as fases do desconforto a que se vira atirado, subitamente, com a perda dos sentidos que sofrera, no escritório, dias antes. Sentira-se desamparado, de chofre. 


Ausente.

O pensamento esvaíra-se-lhe da cabeça, como se expulso por martelada interior.

Pavoroso delíquio que se lhe representara infindável, quando perdurara simplesmente por segundos. Retomara a noção de si mesmo, atarantado, abatido. Curtira apreensões, ensimesmado, por muitos dias.


Para desafrontar-se, expusera a ocorrência perante velho amigo, na antevéspera, já que não sabia como destrinçar o fenômeno.


A tela rearticulada por ele, na imaginação, salientava-se tão nítida que lográvamos contemplá-los juntos, Nemésio e o companheiro que lhe tomara confidências, como se estivessem filmados.


O marido de Beatriz, inconscientemente, configurava informes precisos, acerca do desmaio experimentado, das inquietações conseqüentes, da entrevista que provocara com o colega de negócios e do entendimento cordial havido entre ambos.


Consignamos os avisos que o interlocutor lhe transmitira.


Não lhe cabia adiar providências. Devia procurar um médico, analisar as próprias condições, definir os sintomas.


Traçou advertências.

Verificava-se-lhe facilmente a fadiga. No Rio, obteria melhoras em alguma clínica de repouso. Umas férias não lhe fariam mal. Qualquer síncope, a seu ver, equivalia a puxão de campainha, no apartamento da vida. Sério vaticínio, enfermidade
à porta.


Nemésio, calado, sem perceber que se comunicava conosco, repetia espiritualmente as alegações que formulara.


Difícil a consulta. Responsabilidades em penca, o tempo escasso.


Acompanhava a esposa, na travessia das horas derradeiras, em doloroso término de existência e não encontrava meios de cuidar de si. Não discutia a oportunidade das admoestações, mas admitia-se obrigado a transferir o tratamento para quando pudesse.


No entanto, no âmago do pensamento, por noticiário vivo secretamente arquivado no cofre da alma, desvelava, para nós, motivos outros que não tivera coragem de expender.


Enternecido ao toque de amor fraterno do benfeitor que o auscultava, liberou, em silêncio, as mais fundas preocupações.


Semelhava-se a menino peralta, quando espontâneo e obediente no clima dos pais.


Aclarou, positivo, a razão da fuga a qualquer assunto relacionado com a provável submissão a preceitos médicos. 


Receava conhecer o próprio estado orgânico.

Amava, novamente, crendo-se de regresso às primaveras do corpo físico.

Identificava-se espiritualmente jovem, feliz. Qualificava a afeição de Marina como sendo o reencontro da mocidade que ficara para trás.

Alinhavando recordações e meditações, exibia, diante de nós, a trama dos acontecimentos que lhe sedimentavam as noções precárias da vida, possibilitando-nos retratar-lhe a realidade psicológica.


Beatriz, a companheira em vésperas de desencarnação, erigiase-lhe, agora, no ânimo, em forma de relíquia que situaria, reverentemente,
em breve, no museu das lembranças mais caras.


Imperturbavelmente correta e simples, transformara-lhe a volúpia em admiração e a chama juvenil em calor de amizade serena.


Estranho ao benefício da rotina construtiva, colocara a esposa no lugar da genitora que a morte levara. Disputava-lhe, por instinto, o sorriso benevolente e a bênção da aprovação.


Queria-lhe a presença, como quem se acostuma ao serviço de um traste precioso.

Harmonizava-se consigo próprio, ao chegar, suarento, em casa, descansando a cabeça fatigada em seu olhar. 


Entretanto, Nemésio, de formação materialista e de índole utilitária, conquanto generoso, desconhecia que as almas nobres colhem no amor esponsalício da Terra o fruto da alegria sublime, cuja polpa o tempo sazona e torna mais doce, eliminando os caprichos transitoriamente necessários da casca.

Insistia na conservação de todos os impulsos emotivos da juventude corpórea. Andava em dia com todas as teorias da libido.


Vez por outra, demandava cidades próximas, em noitadas boêmias, asseverando, de retorno, aos amigos que assim procedia para desenferrujar o coração. Dessas escapadas, voltava trazendo à esposa corbelhas de alto preço que Beatriz acolhia, enlevada. No decurso de algumas semanas, mostrava-se para ela mais compreensivo e mais terno. Reconduzido, porém, mais dilatadamente, aos freios do hábito, não sabia consagrar-se às construções espirituais que só a disciplina favorece e garante. Varava, de novo, as fronteiras que os compromissos morais estabeleciam, à maneira de animal arrombando cerca.


Em determinadas ocasiões, acontecia fixar a esposa, invariavelmente abnegada e fiel, perguntando à própria alma o que sucederia se ela adotasse conduta igual à dele, e aterrava-se.


Isso nunca, pensava. Se Beatriz pusesse, ainda que de leve, o voto feminino em outro homem, era capaz de matá-la. Não hesitaria.


Nesses momentos, impressões contraditórias agitavam-lhe o espírito limitado. Não se interessava absolutamente pela mulher, mas não toleraria concorrência à posse daquela a quem confiara o seu nome.


Inquietava-se, imaginava coisas, mas recompunha-se, tranqüilo, recordando a esquisita conceituação de velho amigo que consumira a existência alcoolizado entre os despojos endinheirados de parentes ricos, e que lhe tisnara os sonhos do lar, quando me nino, a repetir-lhe, freqüentemente: 


“Nemésio, mulher é chinela no pé do homem. Quando não presta mais, é preciso arranjar outra.”

Compreensível que, regando a raiz do caráter com as águas turvas de semelhante filosofia, atingisse o genro de Neves o marco dos sessenta anos com os sentimentos deteriorados, no tocante ao respeito que um homem deve a si mesmo.


Por todos esses motivos, na quadra difícil e obscura que atravessava, reaprendera os cuidados da preservação individual.


Readquirira o gosto de vestir-se com distinção, selecionando figurinos e alfaiates. Refinara a sensibilidade masculina, afeiçoara-se aos programas radiofônicos de ginástica, no que, aliás, lograra despojar-se da adiposidade oscilante. Disputava o ingresso em agremiações festivas para atualizar a linguagem e requintar o porte.


Não lhe importavam as tochas brancas que lhe esmaltavam de prata a cabeleira densa. Elegia nos perfumes raros e nas gravatas coloridas motivos de leveza e elegância sempre novos.


Pagara habilmente instruções e pareceres de improvisados professores em renovação da personalidade e embelezara-se, vaidoso, lembrando antigo edifício sob nova decoração.


Evidentemente, não – raciocinava, apreensivo –, não se resignaria a qualquer terapêutica que não fosse a de se lhe acentuar disposições ao prazer. Recusaria, peremptório, toda medida endereçada a suposto reajustamento orgânico, já que se supunha perfeitamente idôneo para comandar as próprias sensações.


Euforia, o problema. Providência medicamentosa, apenas a que lhe arejasse o espírito, rejuvenescendo-lhe as forças.

O irmão Félix voltou a dizer-nos:


– Nemésio demonstra enorme esgotamento, à vista dos hábitos demolidores a que se rendeu. A inquietação emotiva descontrola-lhe os nervos e os falsos afrodisíacos usados solapam-lhe as
energias, sem que ele mesmo perceba.


Diante da afirmativa, o esposo de Beatriz fixou agoniado vinco mental, entremostrando haver assimilado, mecanicamente, o impacto do grave enunciado.


– E se piorasse? – considerou de si para si.


A figura de Marina repontou-lhe da alma.


Nemésio divagou, cismarento.


Concordaria, sim, em recuperar a saúde, mas somente depois...


Depois que retivesse a jovem no lar, entregue a ele, em definitivo, pelos laços do matrimônio. Enquanto não a recolhesse, nos braços, sob regime de compromisso legal, não aceitaria proteção médica. Cabia-lhe sustentar-se capaz e moço aos olhos dela.


Fugiria deliberadamente de conselhos ou disciplinas tendentes a desviá-lo da ronda de passeios, excursões, entretenimentos e bebedices que, na posição de homem enamorado, acreditava dever-lhe.


O irmão Félix não contrapôs qualquer argumentação. Ao revés, administrou-lhe recursos magnéticos em toda a província cerebral, dispensando-lhe assistência.


Ao término da longa operação socorrista, Neves, taciturno, não encobria o próprio desapontamento. A desaprovação esguichava-lhe da cabeça, plasmando pensamentos de censura, que, não obstante respeitosa, nos alcançavam em cheio, por chuva de vibrações negativas.


Talvez, por isso, o benfeitor sugeriu ao dono da casa abandonar o recinto, solicitação muda que Nemésio atendeu, de pronto, já que se munira das escoras que o amigo espiritual espontaneamente lhe oferecia.


Os três, a sós, tornamos à conversação. Félix, sorrindo, afagou de leve os ombros do meu companheiro e ponderou:


– Entendo, Neves, entendo você...


Encorajado pela inflexão de carinho com que semelhantes palavras eram ditas, o sogro de Nemésio desafogou-se:


– Quem entende menos sou eu. Não admito tanto resguardo para um cachorro de má qualidade. Um homem igual a este, que me desrespeita a confiança paterna! Quem não lhe vê no espírito a poligamia declarada? Um sessentão desavergonhado que enxovalha a presença da esposa agonizante! Ah!


Beatriz, minha pobre Beatriz, por que te uniste a um cavalo?

Dementara-se Neves, diante de nós. Retrocedera mentalmente ao círculo acanhado da família humana e chorava, transtornado, sem que lhe pudéssemos cercear a emoção.


– Faço força – gemia acabrunhado –, mas não agüento. De que me vale trabalhar odiando? Nemésio é um mascarado! Tenho estudado a ciência de perdoar e servir, tenho aconselhado serviço e perdão aos outros, mas agora... Divididos por simples parede, vejo o sofrimento e o vício debaixo do mesmo teto.


De um lado, minha filha conformada, aguardando a morte; de outro, meu genro e essa mulher que me insulta a família. Deus do céu! que me foi reservado?

Andarei auxiliando uma filha doente ou sendo chamado à tolerância? Mas, como suportar um homem desses?

Não adiantou um aceno à prudência, na pausa curta.


– Antigamente – tartamudeou ele, desesperado – acreditava que o inferno, depois da morte, fosse pular em vão num cárcere de fogo; hoje aprendo que o inferno é voltar à Terra e estar com os parentes que já deixamos... Isso é a purgação de nossos pecados!...


Félix aproximou-se e ponderou, segurando-lhe afetuosamente as mãos: – Calma, Neves. Sempre surge para todos nós o dia de provar aquilo que somos naquilo que ensinamos. Além disso, Nemésio deve ser entendido...


– Entendido? – entaramelou-se o interlocutor – não chegará ter visto?


E acrescentou, quase irônico:


– Sabe o senhor qual é o rapaz que vem ocupando o pensamento dessa moça?


– Sei, mas deixa-me explicar – clareou Félix com brandura. – Principiemos por aceitar Nemésio na posição em que se encontra.


Como exigir da criança experiência da madureza ou pedir raciocínio certo ao alienado mental? Sabemos que crescimento do corpo não expressa altura de espírito. Nemésio é aluno da vida, qual nós mesmos, sem o benefício da lição em que estamos sendo instruídos.


Que seria de nós, na situação dele, sem a visão que atualmente nos favorece? Provavelmente, cairíamos em condições piores...


– Quer dizer que devo aprová-lo?


– Ninguém aplaude a enfermidade, nem louva o desequilíbrio; no entanto, seria crueldade recusar simpatia e medicação ao doente. Consideremos que Nemésio não é um companheiro desprezível.



Emaranhou-se em sugestões perigosas, mas não fugiu da esposa a quem presta assistência; mostra-se engodado por extravagâncias emotivas de caráter deprimente que lhe dilapidam as forças; contudo, não esqueceu a solidariedade, resolvendo oferecer casa própria e gratuita à senhora que lhe presta serviços remunerados; acredita-se dono de juvenilidade física absolutamente irrisória, quando, na realidade, carrega um corpo em prematuro desgaste; dedica-se apaixonadamente a uma jovem que o menoscaba, conquanto lhe consagre apreço respeitoso... Não bastariam estas razões para merecer benevolência e carinho? 


Quem de nós com a possibilidade de auxiliar? Ele que anda cego ou nós que discernimos? Não posso enaltecer-lhe as manobras lamentáveis, na esfera do sentimento; entretanto, sou obrigado a confessar que ele, na ficha de analfabeto das verdades da alma, ainda não tombou de todo...

Com significativo tom de voz, o instrutor acentuou:


– Neves, Neves! A sublimação progressiva do sexo, em cada um de nós, é fornalha candente de sacrifícios continuados. Não nos cabe condenar alguém por faltas em que talvez possamos incidir ou nas quais tenhamos sido passíveis de culpa em outras ocasiões. Compreendamos para que sejamos compreendidos.


Neves silenciou, decerto controlado pela influência do amigo venerável, e, quando consegui fitá-lo, depois de alguns momentos de expectativa, percebi que se pusera, humildemente, em oração.
Capítulo 6
De volta ao aposento da enferma, certificamo-nos de que
Nemésio e Marina haviam saído. 


A camareira da casa velava.

Neves, desenxabido, absteve-se de qualquer comentário. Retraíra-se no claro propósito de sopitar impulsos menos construtivos.


Recompondo-se, momentos antes, rogara do irmão Félix lhe desculpasse o ataque de cólera em que extravasara rebeldia e desespero.


Descera à inconveniência, acusava-se, humilde.


Fora descaridoso, insensato, penitenciava-se com tristeza. O irmão Félix, com bastante autoridade, se quisesse, poderia demiti-lo do piedoso mister que invocara, com o objetivo de proteger a filha; entretanto, pedia tolerância. O coração paternal, no instante crítico, não se vira preparado, de modo a escalar o nível do desprendimento preciso, declarava com amargura e desapontamento.

Félix, porém, abraçara-o com intimidade e, sorridente, ponderou que a edificação espiritual, em muitas circunstâncias, inclui explosões do sentimento, com trovões de revolta e aguaceiros de pranto, que acabam descongestionando as vias da emoção.


Que Neves esquecesse e recomeçasse. Para isso, contava com os talentos da oportunidade, do tempo.


Obviamente, por isso, o sogro de Nemésio ali se achava agora, diante de nós, transformado e solícito.

Por indicação do paciente amigo que nos orientava, formulou uma prece, enquanto ministrávamos socorro magnético à doente.


Beatriz gemia; no entanto, Félix esmerou-se para que se aliviasse e dormisse, providenciando, ainda, para que não se retirasse do corpo, sob a hipnose habitual do sono. Não lhe convinha, por enquanto, esclareceu ele, afastar-se do veículo fatigado. Em virtude dos órgãos profundamente enfraquecidos, desfrutaria penetrante lucidez espiritual e não seria prudente arremessá-la, de chofre, a impressões demasiado ativas da esfera diferente para a qual se transferiria, muito em breve.


Aconselhável seria a mudança progressiva.


Graduação de luz,
intensificando-se, a pouco e pouco.


Largamos a filha de Neves em repouso nutriente e restaurador, e demandamos a rua.


Acompanhando Félix, cujo semblante passou a denotar funda preocupação, alcançamos espaçoso apartamento do Flamengo, onde conheceríamos, de perto, os familiares de Marina.


A noite avançava.


Transpassando estreito corredor, pisamos o recinto doméstico, surpreendendo, no limiar, dois homens desencarnados, a debaterem, com descuidada chocarrice, escabrosos temas de vampirismo.


Vale assinalar que, não obstante pudéssemos fiscalizar-lhes os movimentos e ouvir-lhes a loquacidade fescenina, nenhum dos dois lograva registrar-nos a presença. Prometiam arruaças.


Argumentavam, desabridos.

Malandros acalentados, mas perigosos, conquanto invisíveis para aqueles junto dos quais se erguiam por ameaça insuspeitada.


Por semelhantes companhias, fácil apreciar os riscos a que se expunham os moradores daquele ninho de cimento armado, a embutir-se na construção enorme, sem qualquer defesa de espírito.


Entramos. Na sala principal, um cavalheiro de traços finos, em cuja maneira de escarrapachar-se se adivinhava, para logo, o dono da casa, lia um jornal vespertino com atenção.


Os atavios do ambiente, apesar de modestos, denunciavam apurado gosto feminino. O mobiliário antigo de linhas quase rudes suavizava-se ao efeito de ligeiros adornos.

Tufos de cravos vermelhos, a se derramarem de vasos cristalinos, harmonizavam-se com as rosas da mesma cor, habilmente desenhadas nas duas telas que pendiam das paredes, revestidas de amarelo dourado. Mas, destoante e agressiva, uma esguia garrafa, contendo uísque, empinava o gargalo sobre o crivo lirial que completava a elegância da mesa nobre, deitando emanações alcoólicas que se casavam ao hálito do amigo derramado no divã.


Félix encarou-o, manifestando a expressão de quem se atormentava, piedosamente, ao vê-lo, e no-lo indicou:


– Temos aqui o irmão Cláudio Nogueira, pai de Marina e tronco do lar.


Fisguei-o, de relance. Figurou-se-me o hospedeiro involuntário um desses homens maduros que se demoram na quadra dos quarenta e cinco janeiros, esgrimindo bravura contra os desbarates do tempo. Rosto primorosamente tratado, em que as linhas firmes repeliam a notícia vaga das rugas, cabelos penteados com distinção, unhas polidas, pijama impecável. Os grandes olhos escuros e móveis pareciam imanizados às letras, pesquisando motivos para trazer um sorriso irônico aos lábios finos.


Entre os dedos da mão que descansava à beira do sofá, o cigarro fumegante, quase rente ao tripé anão, sobre o qual um cinzeiro repleto era silenciosa advertência contra o abuso da nicotina.

Detínhamo-nos, curiosos, na inspeção, quando sobreveio o inopinado.


Diante de nós, ambos os desencarnados infelizes, que surpreendêramos à entrada, surgiram de repente, abordaram Cláudio e agiram sem-cerimônia. Um deles tateou-lhe um dos ombros e gritou, insolente: – Beber, meu caro, quero beber!


A voz escarnecedora agredia-nos a sensibilidade auditiva.


Cláudio, porém, não lhe pescava o mínimo som. 


Mantinha-se atento à leitura. Inalterável. Contudo, se não possuía tímpanos físicos para qualificar a petição, trazia na cabeça a caixa acústica da mente sintonizada com o apelante.

O assessor inconveniente repetiu a solicitação, algumas vezes, na atitude do hipnotizador que insufla o próprio desejo, reasseverando uma ordem.


O resultado não se fez demorar. Vimos o paciente desviar-se do artigo político em que se entranhava. Ele próprio não explicaria o súbito desinteresse de que se notava acometido pelo editorial que lhe apresara a atenção.


Beber! Beber!...


Cláudio abrigou a sugestão, convicto de que se inclinava para um trago de uísque exclusivamente por si.


O pensamento se lhe transmudou, rápido, como a usina cuja corrente se desloca de uma direção para outra, por efeito da nova tomada de força.


Beber, beber!... e a sede de aguardente se lhe articulou na idéia, ganhando forma. A mucosa pituitária se lhe aguçou, como que mais fortemente impregnada do cheiro acre que vagueava no ar. O assistente malicioso coçou-lhe brandamente os gorgomilos.


O pai de Marina sentiu-se apoquentado. Indefinível secura constringia-lhe o laringe. Ansiava tranqüilizar-se.


O amigo sagaz percebeu-lhe a adesão tácita e colou-se a ele.


De começo, a carícia leve; depois da carícia agasalhada, o abraço envolvente; e depois do abraço de profundidade, a associação recíproca.


Integraram-se ambos em exótico sucesso de enxertia fluídica. Em várias ocasiões, estudara a passagem do Espírito exonerado do envoltório carnal pela matéria espessa. Eu mesmo, quando me afazia, de novo, ao clima da Espiritualidade, após a desencarnação última, analisava impressões ao transpor, maquinalmente, obstáculos e barreiras terrestres, recolhendo, nos exercícios feitos, a sensação de quem rompe nuvens de gases condensados.


Ali, no entanto, produzia-se algo semelhante ao encaixe perfeito.


Cláudio-homem absorvia o desencarnado, à guisa de sapato que se ajusta ao pé. Fundiram-se os dois, como se morassem eventualmente num só corpo. Altura idêntica. 


Volume igual.

Movimentos sincrônicos. Identificação positiva.


Levantaram-se a um tempo e giraram integralmente incorporados um ao outro, na área estreita, arrebatando o delgado frasco.


Não conseguiria especificar, de minha parte, a quem atribuir o impulso inicial de semelhante gesto, se a Cláudio que admitia a instigação ou se ao obsessor que a propunha.


A talagada rolou através da garganta, que se exprimia por dualidade singular. Ambos os dipsômanos estalaram a língua de prazer, em ação simultânea.


Desmanchou-se a parelha e Cláudio, desembaraçado, se dispunha a sentar, quando o outro colega, que se mantinha a distância, investiu sobre ele e protestou: “eu também, eu também quero!”


Reavivou-se-lhe no ânimo a sugestão que esmorecia..


Absolutamente passivo diante da incitação que o assaltava, reconstituiu, mecanicamente, a impressão de insaciedade.


Bastou isso e o vampiro, sorridente, apossou-se dele, repetindo-se o fenômeno da conjugação completa. Encarnado e desencarnado a se justaporem. Duas peças conscientes, reunidas em sistema irrepreensível de compensação mútua.


Abeirei-me de Cláudio para avaliar, com imparcialidade, até onde sofreria ele, mentalmente, aquele processo de fusão.


Para logo convenci-me de que continuava livre, no íntimo.


Não experimentava qualquer espécie de tortura, a fim de render-se.


Hospedava o outro, simplesmente, aceitava-lhe a direção, entregava-se por deliberação própria. Nenhuma simbiose em que se destacasse por vítima.


Associação implícita, mistura natural.

Efetuava-se a ocorrência na base da percussão. Apelo e resposta.


Cordas afinadas no mesmo tom. O desencarnado alvitrava, o encarnado aplaudia. Num deles, o pedido; no outro, a concessão.


Condescendendo em ilaquear os próprios sentidos, Cláudio acreditou-se insatisfeito e retrocedeu, sorvendo mais um gole.


Não me furtei à conta curiosa. Dois goles para três.
Novamente desimpedido, o dono da casa estirou-se no divã e retomou o jornal.


Os amigos desencarnados tornaram ao corredor de acesso, chasqueando, sarcásticos, e Neves, respeitoso, consultou sobre responsabilidade.


Como situar o problema? Se víramos Cláudio aparentemente reduzido à condição de um fantoche, como proceder na aplicação da justiça? Se ao invés de bebedice, estivéssemos diante de um caso criminal?


Se a garrafa de uísque fosse arma determinada, para insultar a vida de alguém, como decidir? A culpa seria de Cláudio que se submetia ou dos obsessores que o comandavam?

O irmão Félix aclarou, tranqüilo: – Ora, Neves, você precisa compreender que nos achamos à
frente de pessoas bastante livres para decidir e suficientemente lúcidas para raciocinar. No corpo físico ou agindo fora do corpo físico, o Espírito é senhor da constituição de seus atributos. Responsabilidade não é título variável.


Tanto vale numa esfera, quanto em outras. Cláudio e os companheiros, na cena que acompanhamos, são três consciências na mesma faixa de escolha e manifestações conseqüentes. Todos somos livres para sugerir ou assimilar isso ou aquilo. Se você fosse instado a compartilhar um roubo, decerto recusaria. E, na hipótese de abraçar a calamidade, em são juízo, não conseguiria desculpar-se.

Interrompeu-se o mentor, volvendo a refletir após momento rápido:


– Hipnose é tema complexo, reclamando exames e reexames de todos os ingredientes morais que lhe digam respeito. Alienação da vontade tem limites. 


Chamamentos campeiam em todos os caminhos. Experiências são lições e todos somos aprendizes.

Aproveitar a convivência de um mestre ou seguir um malfeitor é deliberação nossa, cujos resultados colheremos.


Verificando que o orientador se dava pressa em ultimar os esclarecimentos sem mostrar o mínimo propósito de afastar as entidades vadias que pesavam no ambiente, Neves voltou à carga, no intuito louvável do aluno que aspira a complementar a lição.


Pediu vênia para repisar o assunto na hora.


Recordou que, sob o teto do genro, o irmão Félix se esmerava na defesa contra aquela casta de gente.


Amaro, o enfermeiro prestimoso, fora situado junto de Beatriz principalmente para correr com intrometidos desencarnados. O aposento da filha tornara-se, por isso, um refúgio. Ali, no entanto...

E perguntava pelo motivo da direção diversa. Félix expressou no olhar a surpresa do professor que não espera apontamento assim argucioso por parte do discípulo e explicou que a situação era diferente.


A esposa de Nemésio mantinha o hábito da oração. Imunizava-se espiritualmente por si. Repelia, sem esforço, quaisquer formas-pensamentos de sentido aviltante que lhe fossem arremessadas.


Além disso, estava enferma, em vésperas da desencarnação.


Deixá-la à mercê de criaturas insanas seria crueldade. Garantias concedidas a ela erguiam-se justas.


– Mas... e Cláudio? – insistiu Neves. – Não merecerá, porventura, fraterna demonstração de caridade, a fim de livrar-se de tão temíveis obsessores?


Félix sorriu francamente bem-humorado e explicou:


– “Temíveis obsessores” é a definição que você dá.


– E avançou:

– Cláudio desfruta excelente saúde física. Cérebro claro, raciocínio seguro. É inteligente, maduro, experimentado. Não carrega inibições corpóreas que o recomendem a cuidados especiais.


Sabe o que quer. Possui materialmente o que deseja. Permanece no tipo de vida que procura. É natural que esteja respirando a influência das companhias que julgue aceitáveis. 


Retém liberdade ampla e valiosos recursos de instrução e discernimento para juntar-se aos missionários do bem que operam entre os homens, assegurando edificação e felicidade a si mesmo. Se elege para comensais da própria casa os companheiros que acabamos de ver, é assunto dele.

Enquanto nos arrastávamos, tolhidos pela carne, não nos ocorreria a idéia de expulsar da residência alheia as pessoas que não se harmonizassem conosco. Agora, vendo o mundo e as coisas do mundo, de mais alto, não será cabível modificar semelhante modo de proceder.

O tema desdobrava-se, assumindo aspectos novos.
Curioso, interferi: – Mas, irmão Félix, é importante convir que Cláudio, liberto, poderia ser mais digno...


– Isso é perfeitamente lógico – confirmou. Ninguém nega.


– E por que não dissipar de vez os laços que o prendem aos malandros que o exploram?


O alto raciocínio da Espiritualidade superior jorrou, pronto:


– Cláudio certamente não lhes empresta o conceito de vagabundos.


Para ele, são sócios estimáveis, amigos caros. Por outro lado, ainda não investigamos a causa da ligação entre eles para cunhar opiniões extremadas. As circunstâncias podem ser saudáveis ou enfermiças como as pessoas e, para tratarmos um doente com segurança, há que analisar as raízes do mal e confirmar os sintomas, aplicar medicação e estudar efeitos. Aqui, vemos um problema pela rama. Quando terá nascido a comunhão do trio? Os vínculos serão de agora ou de existências passadas? 


Nada legitimaria um ato de violência da nossa parte, com o intuito de separálos, a titulo de socorro. Isso seria o mesmo que apartar os pais generosos dos filhos ingratos ou os cônjuges nobres dos esposos ou das esposas de condição inferior, sob o pretexto de assegurar limpeza e bondade nos processos da evolução. A responsabilidade tem o tamanho do conhecimento.

Não dispomos de meios precisos para impedir que um amigo se onere em dívidas escabrosas ou se despenque em desatinos deploráveis, conquanto nos seja lícito dispensar-lhe o auxílio possível, a fim de que se acautele contra o perigo no tempo viável, sendo de notar-se que as autoridades superiores da Espiritualidade chegam a suscitar medidas especiais que impõem aflições e dores de importância aparente a determinadas pessoas, com o objetivo de livrá-las da queda em desastres morais iminentes, quando mereçam esse amparo de exceção. Na Terra, a exata justiça apenas cerceia as manifestações de alguém, quando esse alguém compromete o equilíbrio e a segurança dos outros, na área de responsabilidade que a vida lhe demarca, deixando a cada um a regalia de agir como melhor lhe pareça. 

Adotaremos princípios que valham menos, perante as normas que afiançam a harmonia entre os homens?

Rematando as elucidações lapidares que entretecia, o irmão Félix revestira-se de um halo brilhante.


Enlevados, não encontrávamos em nós senão silêncio para significar-lhe admiração ante a sabedoria e a simplicidade.


O instrutor fitava Cláudio com simpatia, dando a entender que se dispunha a abraçá-lo paternalmente, e, receando talvez que a oportunidade escapasse, Neves, humilde e respeitoso, pediu se lhe relevasse a insistência; entretanto, solicitava fosse aclarado, ainda, um ponto dos esclarecimentos em vista.


Diante do mentor paciente, perguntou pelos promotores de guerra, entre os homens. Declarara Félix que a justiça tacitamente cerceia as ações dos que ameaçam a estabilidade coletiva. Como entender a existência de governantes transitórios, erigindo-se na Terra em verdugos de nações?


Félix sintetizou, reempregando algumas das palavras de que se utilizara:


– Dissemos “cercear” no sentido de “corrigir”, “restringir”.


Assinalamos igualmente que toda criatura vive na área de responsabilidade que a lei lhe delimita. Compreendendo-se que a responsabilidade de alguém se enquadra ao tamanho do conhecimento superior que esse alguém já adquiriu, é fácil admitir que os compromissos da consciência assumem as dimensões da autoridade que lhe foi atribuída. Uma pessoa com grandes cabedais de autoridade pode elevar extensas comunidades às culminâncias do progresso e do aprimoramento ou afundá-las em estagnação e decadência. Isso na medida exata das atitudes que tome para o bem ou para o mal.


 Naturalmente, governantes e administradores, em qualquer tempo, respondem pelo que fazem.

Cada qual dá conta dos recursos que lhe foram confiados e da região de influência que recebeu, passando a colher, de modo automático, os bens ou os males que haja semeado.

Víamos, porém, que Félix não desejava estender-se em mais amplas considerações filosóficas.


Assentando no rosto a expressão de quem nos pedia transferir para depois qualquer nova interrogação, acercou-se de Cláudio, a envolvê-lo nas suaves irradiações do olhar brando e percuciente.


Estabeleceu-se ligeira e doce expectativa.


O benfeitor acusava-se emocionado. Parecia agora mentalmente distanciado no tempo. Acariciou a cabeleira daquele homem, com quem Neves e eu, no fundo, não nos afináramos assim tanto, semelhando-se médico piedoso, encorajando um doente menos simpático.


Aquele momento de comoção, entretanto, foi rápido, quase imperceptível, porque o irmão Félix retomou-nos a intimidade e comentou, despretensioso:


– Quem afirmará que Cláudio amanhã não será um homem renovado para o bem, passando a educar os companheiros que o deprimem? Por que atrair contra nós a repulsão dos três, simplesmente porque se mostrem ignorantes e infelizes? E admitir-se-á, porventura, que não venhamos a necessitar uns dos outros? Existem adubos que lançam emanações extremamente desagradáveis; no entanto, asseguram a fertilidade do solo, auxiliando a planta que, a seu turno, se dispõe a auxiliar-nos.


O benfeitor esboçou o gesto de quem encerrava a conversação e lembrou-nos, gentil, o trabalho em andamento.